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Em artigo, Krause critica a esquerda nostálgica

{ Posted on 15:10 by Edmar Lyra Filho }
Por Gustavo Krause

Dou um doce a quem imaginar como será o mundo em maio de 2068. Dou uma dúzia de doces a quem, usando o gênero da ficção científica, da fantasia literária, das profecias sociais, passe triscando pelo cenário real daquele futuro não tão distante.

Aliás, sempre desconfiei dos profetas, futurólogos, videntes. Em geral são charlatães do desconhecido e exploradores da ansiedade humana pelo conhecimento antecipado do que não lhe pertence: o futuro. Ademais, este tipo de gente não estará vivo, nem ele nem seus ouvintes, para pagar o preço do desmentido.

Certeza mesmo somente para dois fatos: todos os viventes de maio 1968 serão, como filosofava em Meditações o estóico Marco Aurélio, "Cinzas. E o nome não passará de mero ruído ou eco"; todos os sobreviventes estarão celebrando, estudando e avaliando o evento centenário que eclodiu na França e mudou o mundo.

Sobre a passagem dos 40 anos de maio de 1968, fui entrevistado pelo Jornalista Sérgio Montenegro do JC. Um registro por dever de justiça: o jovem repórter superou o trato superficial das matérias, exigência determinada pelo tempo e espaço na atividade jornalística. Tinha estudado - e bem - o assunto.

Foram duas horas de conversa, de reflexões sem, contudo, perder foco da entrevista cujo objetivo era avaliar os efeitos de maio de 68 sobre a política atual, em especial, sobre a clivagem político-ideológica esquerda x direita.

Embora não tenha sido uma revolução clássica, maio de 68 foi o movimento social mais importante do século XX.

Com a palavra, um dos símbolos do movimento estudantil francês, Daniel Cohn-Bendit: "O movimento de 1968 punha em questão o modo de vida: reclamava o direito ao prazer e atacava a sociedade do metro-boulot-dodo" (rotina dos franceses que se resumia ao metrô-trabalho-sono).

Rebeldes, libertários, contestadores, os jovens protagonistas de 68 deixavam isto claro nas suas palavras de ordem: "é proibido proibir", "o poder está nas ruas", "a imaginação está nas ruas", "seja razoável, peça o impossível", "desobedeça antes de escrever nos muros", "não acredite em ninguém com mais de 30 anos" e "faça amor e não faça a guerra", o dístico da contracultura hippie.
Por trás desta contestação, parecia estar um traço freudiano, segundo o qual "felicidade só existe ao preço de uma revolta", associado a um questionamento amplo e irrestrito a respeito de tudo que os rodeavam. Revolta e transgressão batiam de frente com as ordens estabelecidas, as verdades cristalizadas e o tradicionalismo instaurado.
Na época, havia eletricidade no ar e bastava uma centelha para provocar o curto-circuito destes fios desencapados. A rebelião estudantil de Nanterre foi a centelha. Dali vieram, como diz, hoje, Cohn-Bendit "sinais premonitórios da necessidade de reformas profundas".

Depois de maio de 68 o mundo não foi mesmo. Nenhuma forma de poder ficou livre de contestação: o poder dos pais sobre os filhos; dos homens sobre as mulheres; dos brancos sobre os negros; dos hetero sobre os homossexuais; das maiorias sobre as minorias; do homem sobre a natureza. A política convencional perdeu prestígio. As ideologias entraram em crise. Em contrapartida a agenda transversal, suprapartidária, humanitária ganhou espaço e passou a ocupar centralidade no debate mundial (feminismo, ecologismo, ecumenismo, igualitarismo entre os diferentes, etc...).

Em todos os recantos do Globo, havia o prenúncio de rupturas: desde a "ofensiva tet" dos vietcongues contra os americanos, passando pelo fim da "Primavera de Praga", pela multiplicação dos movimentos estudantis até os assassinatos dos líderes americanos Luther King e Bob Kennedy.

No Brasil, Zuenir Ventura, personagem, cronista e historiador, conta, com notável lucidez, a aventura de uma geração no livro "1968, o ano que não terminou", recentemente enriquecido com a publicação de "1968, o que fizemos de nós".

Porque estava além das ideologias dominantes e da definição clássica de direita e esquerda, o movimento dos jovens de 68 fez soar as trombetas que, em 1989, fizeram ruir o muro de Berlim; gestou a "terceira onda democrática" a partir da década de setenta; embaralhou os conceitos da política tradicional.

Como fica nos dias de hoje "direita" e "esquerda", tomando-se como ponto de partida 1968?

A direita triunfalista saúda a morte da esquerda, sepultada sob os escombros do socialismo real. É uma tese que reflete o ajuste de contas dialético frente a uma corrente do pensamento que esbanjou soberba no debate político ao longo dos séculos XIX e XX. Esta soberba repousava sobre a crença num modelo de sociedade que resultaria da inexorável marcha da história; propunha a utopia da sociedade igualitária, construída por uma classe eleita, o proletariado; nela seria recriado o novo homem, repleto de virtudes, entre elas, a pureza ética. Não rezar pela cartilha marxista era imperdoável heresia. No entanto, o ajuste de contas, é importante ressaltar, não é o mais nobre argumento para uma discussão saudável.

Noutro extremo, a esquerda nostálgica resiste à necessidade de atualização; permanece mais apegada a velhos fantasmas do que inclinadas a assumir novas bandeiras; romantizam o passado e seguem incapazes de compreender o mundo atual e vislumbrar o futuro.

Entre as posições extremadas, há os que reconhecem que estas categorias continuam habitando o imaginário, inspirando conteúdos programáticos e orientando a ação política. Entretanto, houve um evidente deslocamento tanto da direita quanto da esquerda em direção ao espectro político do centro. A pergunta pertinente é a seguinte: quais são os critérios de diferenciação?

Norberto Bobbio, no seu livro "Esquerda e Direita", tomou, como critérios de diferenciação dois ideais - liberdade e igualdade, e as duas ideologias dominantes - o liberalismo e o socialismo, ressalvando que "nenhum dos dois ideais pode ser realizado em suas extremas conseqüências sem alguma limitação às possibilidades de realização do outro".

Nesta linha de raciocínio, usa o critério da igualdade para distinguir esquerda e direita e o critério da liberdade para distinguir os extremos da esquerda e da direita. E propõe esquematicamente o seguinte espectro em que se situam as posições políticas:

"a) na extrema-esquerda estão os movimentos simultaneamente igualitários e autoritários, dos quais o jacobinismo é o exemplo histórico mais importante, a ponto de se ter tornado uma abstrata categoria aplicável, e efetivamente aplicada, a períodos e situações históricas diversas;

b) no centro-esquerda, doutrinas e movimentos simultaneamente igualitários e libertários, para os quais podemos empregar hoje a expressão "socialismo liberal", nela compreendendo todos os partidos social-democratas, em que pesem suas diferentes práxis políticas;

c) no centro-direita, doutrinas e movimentos simultaneamente libertários e inigualitários, entre os quais se inserem os partidos conservadores, que se distinguem das direitas reacionárias por sua fidelidade ao método democrático, mas que, com respeito ao ideal da igualdade, se prendem à igualdade diante da lei, que implica unicamente o dever por parte do juiz de aplicar imparcialmente as leis, e à liberdade idêntica, que caracteriza aquilo que chamei de igualitarismo mínimo;

d) na extrema-direita, doutrinas e movimentos antiliberais e antiigualitários, dos quais creio supérfluo indicar exemplos históricos bem conhecidos como o fascismo e o nazismo".
Pelo visto, Bobbio estava certo quando se definia como "um dualista impenitente".

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